Marieli Pereira
A professora Marieli é uma mulher negra, batalhadora e apaixonada por ensinar. Nascida em São Paulo, se mudou para um bairro carente de Salvador na Bahia ainda quando criança. Atualmente, doutora pela Universidade Federal da Bahia, atua entre pensadora e educadora de língua inglesa a partir de uma abordagem decolonial.
“Eu vim para Salvador com seis, sete anos. Então eu me considero baiana! Por um erro do destino nasci em São Paulo, mas o erro foi logo corrigido [risos]”, conta. Ela cresceu em uma comunidade carente da cidade e encontrou uma saída para melhorar de vida ao se tornar professora de língua inglesa. “É muito difícil, desafiador, mas ao mesmo tempo eu vim para esse mundo para fazer isso. Para contribuir com a humanidade através da educação”, complementa.
Marieli entende muito bem como aprender inglês pode mudar trajetórias. “Uma professora minha conseguiu uma bolsa de um curso em inglês. Essa professora mudou não só minha vida, mas da minha família. Depois entrei na universidade, minha irmã também se inspirou e entrou”, relembra.
Após se formar, retornou à sua comunidade para, assim como sua professora, ajudar outros alunos a realizarem seus sonhos. Boa parte de sua infância ocorreu no bairro onde hoje ensina. Usa suas vivências como professora e acadêmica de línguas estrangeiras para somar os horizontes de seus alunos. “Eu fui criada no bairro Nordeste de Amaralina e tenho muito da cultura local dentro de mim. Mas eu também tenho essa perspectiva de outras regiões. Eu saí, fui trabalhar em outros lugares, viajei, fiz parte do meu doutorado nos EUA. Por isso, consigo transitar em várias realidades diferentes. E isso tudo afeta a minha interação com a região onde ensino”.
Marieli acredita na língua inglesa como ferramenta para a mobilidade social e econômica, mas não se esquece de uma série de problemáticas no ensino do idioma. “O ensino de inglês é muito elitista, muito branco. É uma língua dos colonizadores. Então, estou ensinando inglês, mas não estou priorizando a cultura estadunidense ou a cultura britânica, porque se for assim os alunos não se vêem. E se eles não se enxergam, não vão querer estudar”. Essa problemática levou à escolha do caminho pedagógico de suas aulas uma abordagem decolonial no ensino. “Quando a escola tem um livro didático, eu chamo atenção dos alunos para as narrativas coloniais. Por exemplo, um texto falava sobre como os persas tinham ‘invadido’ um país. Mas ao abordar os ingleses, tratava como se eles tivessem ‘descoberto’ outro local. Por que um povo ‘invade’ e outro ‘descobre’? E disso a gente entra em outras questões. Quem escreveu os livros, qual o interesse de continuar com essas narrativas? E os alunos entendem!” afirma Marieli.
Outra forma de luta, é a valorização e memória de tradições diferentes das dos colonizadores. “Eu coloco histórias de pessoas negras de países africanos. Tem mais de 20 países na África que tem inglês como língua oficial. Eu também trago a Jamaica, falo das variantes de lá e abordo os movimento contra a opressão colonial. Levo músicas, cantores. E assim a gente fala inglês, a gente estuda a gramática, analisa a história, a cultura, mas dentro de uma perspectiva diferente. Que não é a do colonizador, que não é eurocêntrica.”
A temática decolonial é uma área de especialidade de Marieli. Além das dificuldades sociais e econômicas locais, o desafio de descobrir um ensino de língua inglesa com um potencial transformador inclui resgatar fatos esquecidos pela história oficial. “É um trabalho que exige muita pesquisa, porque não existe pronto.”, explica a educadora.
Para ajudar a preencher esse abismo, Marieli se organizou com outras professoras para criar um material didático capaz de consolidar parte das experiências de educação antirracista. “Foi a professora Joelma Santos que em seu doutorado criou um curso de ensino de inglês com uma perspectiva afrocentrada. Daí, junto com os alunos do curso nós fizemos um livro nessa temática”, explica.
Para Marieli, é a partir dessa abordagem que o inglês pode se tornar uma ferramenta de transformação para contribuir com a realidade socioeconômica brasileira. Não enquanto conhecimento estrangeiro, mas como instrumento a ser apropriado para emancipação. “bell hooks comenta que o inglês foi a língua do colonizador, que fomos obrigados a aprender, mas que ela pode ser usada a nosso favor. Para a gente se defender, e mostrar o nosso valor. Às vezes um aluno me fala ‘professora, eu nem sei português, porque tenho que saber inglês?’ Eu respondo, ‘somos descendentes de povos poliglotas. Tem mais de duas mil línguas no continente africano. E, além disso, eles ainda falam a língua do colonizador. Francês, inglês e português. E vocês, descendentes desses povos não podem aprender inglês?’ E aí eles ficam pensando ‘se sou descendente desses povos posso falar qualquer língua!”.
Não se trata, assim, de uma luta nova, e sim de um processo histórico de resistência contra a opressão. A língua inglesa, a princípio ferramenta de dominação, é ressignificada por meio da memória e da luta. “Esses movimentos, seja de pessoas negras, indígenas, ou em situação financeira vulnerável, sempre existiram. São povos, etnias, grupos sociais que lutam por alguma melhoria. A gente só está dando continuidade a uma luta antiga.”
Marieli reconhece o tamanho do desafio na luta contra todas as formas de opressão, como o racismo, e vê potencial em novas tecnologias para organizar movimentos de baixo para cima. “Antes, essas lutas ficavam muito restritas a uma certa área geograficamente marcada. Não tinha possibilidade de ser expandida. A tecnologia, as redes sociais, a internet de forma geral são uma forma da gente se fortalecer e alcançar mais pessoas.”
Marielle pontua que a luta é tão constante quanto o esquecimento e que é necessário preservar a memória e continuar. “É importante a gente não desistir do enfrentamento. Angela Davis fala isso ‘a liberdade é uma luta constante’. Então, não vai ter trégua, não vai ter fim. Porque de uma geração para outra tem coisas que são esquecidas, escondidas. Então, é um trabalho que tem que ser renovado, nunca interrompido.”
Com garra, amor e conhecimento, Marieli ensina a estudantes a transgredirem uma ordem projetada para que eles falhem. Sua prática potencializa a língua inglesa como instrumento de luta por libertação e memória. Acredita no potencial da base de virar o jogo contra um sistema baseado na exploração do povo preto e periférico. Rebelde na alma, faz do inglês ferramenta contra a persistente colonialidade.